sexta-feira, 2 de setembro de 2016





Ele olhava para ela, inocente, lembrando de como era seu rosto no passado. Os porta retratos espalhados pela casa denunciavam a passagem do tempo. Mais de 80 anos ...

Nos cabelos brancos dela, ele ainda podia ver o brilho do loiro dourado que cheirava a jasmim. Ela tinha o cabelo quase na cintura e ele se apaixonava por ela cada vez que ela segurava aquele cabelo volumoso, entrelaçando os dedos com agilidade e fazendo um coque. Sem grampos, sem nada. Era uma das coisas que ela fazia e que ele não podia entender ... Parecia mágica.
Quando nasceu o primeiro filho, ela precisou cortar o cabelo. Não conseguia cuidar do bebê com aquele cabelo enorme caindo nos ombros. O corte era a moda da época, modelo chanel. Ela ficou linda, parecia mais sábia e madura.

Anos depois, quando ela precisou desfazer-se do cabelo todo, ele também estava lá, segurando sua mão enquanto as mechas douradas soltavam-se dela, dia após dia, como se não lhe pertencessem mais. Então ela amarrava lenços na cabeça. Eram coloridos e muito compridos, as pontas caiam pelos ombros e ficavam na altura dos seios. Foi uma batalha que ela venceu com a delicadeza desse tipo de mágica que ela dominava.

Agora, ali estava ela, tão pequena e frágil. Os cabelos ralos já não diziam de uma luta. Eles não tinham ido embora por um tempo, eles quase não existiam mais. Era o fim.
As mãos enrugadas e cheias de manchas, que ele infinitas vezes tinha segurado, como num passo de valsa pela vida ... As mãos dela que tantas ceias de natal tinham proporcionado a ele, com a família em volta da mesa. Família que fora ela, também, quem lhe dera de presente. Ele nunca pediu nada durante a vida toda. E mesmo assim, ela lhe deu tudo.

E agora o tempo era marcado pela batida do monitor cardíaco. Ela estava prestes a morrer. E ele sabia que não tardaria muito, seguiria o caminho da esposa. Não porque ele estivesse doente ou fraco, nem porque a vida não pudesse mais ter sentido quando ela se fosse. Mas porque eles se haviam condenado, por escolha e por amor, a ficar juntos para sempre.

Mas antes disso, ele ainda podia estar ali, ao lado dela.
Olhando-a, ele pensou que ela não tinha mais aqueles lindos olhos curiosos abertos, nem os cabelos dourados, nem o corpo bonito de moça. Ela não tinha mais nem as palavras proferidas pela voz doce e firme. E, ainda assim, ele não conseguia deixar de olhá-la.
Pensou, então, que essa devia ser mais uma dessas mágicas que ela fazia e que ele sempre sentiu, mas jamais pôde entender.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Matur(idade)

Tenho visto, frequentemente, o termo "maturidade" sendo usado para definir o nível de evolução de cada um. Para isso, ditam-se quais os tipos de atitude que as pessoas devem ter frente às situações. 
Eu confesso que, fora do consultório, também já me surpreendi fazendo relações entre a idade cronológica e as supostas respostas "certas" para cada fase da vida. 
Mas que parâmetros são esses que estamos usando?
De onde vêm as definições que estabelecemos e porquê elas são tão rígidas?

A maturidade pode ter a ver com o equilíbrio, mas mesmo as pessoas mais equilibradas podem desestabilizar-se, já que a vida está mais para uma corda bamba que para uma corda fixa.
Antigamente, existiam inúmeros rituais para marcar a passagem de uma fase para a outra. Alguns deles sobreviveram e estão sempre acontecendo à nossa volta. Como o casamento, por exemplo. Ainda assim, justifica-se a maioria dos divórcios sob a idéia de que um dos parceiros ou ambos não estavam preparados. Por isso, ainda que uma mulher seja casada e tenha filhos, pode ser considerada infantil. Ou homem de 50 anos, que seja bem sucedido e tenha constituído família, pode ser, por dentro, nada mais que uma criança carente e assustada.
O que marca o desenvolvimento humano não tem nada a ver com idade, QI ou capacidade. Tem a ver com a história de vida que só pode ser contada por quem a viveu. Tem a ver com as dores do passado e com os segredos que adormecem desconhecidos no mais profundo do nosso próprio oceano.
Se é necessário definir, para mim, então, a maturidade tem a ver com a coragem. A coragem de aceitar-se como é não mais viver sob o peso das palavras recalcadas. Talvez a maturidade venha da mais absoluta força que pode haver no ser humano: reconhecer suas próprias fraquezas, não mais projetando-as nos outros, e tomar o caminho mais difícil de todos, a análise.

O relógio da psicanálise é outro. E me ensina todos os dias que a única forma verdadeira de entender o outro é aceitando que, para cada um de nós, há um tempo diferente e cada um é exatamente do jeito que consegue ser.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Como (não) criar filhos felizes

Passando pela livraria, sem querer (mesmo) esbarrei na sessão de auto ajuda e me deparei com o seguinte título: "Como criar filhos felizes e obedientes?" Não acreditei. Mas não pára por aí, a lista de manuais continua. Cada um para um tipo de filho: inteligente, bem sucedido, basta escolher o seu. E o melhor, tudo pela bagatela de 49,90. Não é fantástico?
Não, não é!

Eu sabia que existiam as cartilhas de "como fazer" com o chefe, com o namorado, com a ex mulher ... mas não imaginava que agora os pais também tinham esse privilégio. Honestamente, não consigo entender como um psicólogo pode escrever isso e uma editora pode publicar.

Mas o questionamento vai além. Eu me pergunto o que esperar da geração que vem aí para ser objeto de estudo prático dos pais. Como será que funciona? Tentativa e erro?
O que esperar de uma geração filha de pais que não sabem mais seguir instintos? Que precisam recorrer aos livros pra tomar uma decisão a respeito de seus próprios filhos? Pais que investem tanto dinheiro em livros, escolas, tecnologia, mas investem tão pouco em desejo?

Todos os dias eu vejo crianças tornarem-se objetos do sucesso pessoal de seus pais. Eu me lembro de, quando pequena, disputar com meus colegas quem tinha o pai mais forte. Hoje, a disputa é inversa. Nas reuniões escolares, os filhos são os novos troféus. Os pais são ótimos em exibir o filho ao mundo, mas são péssimos em abraçar. É a mecanização do amor. E então eu me deparo com crianças cheias de sintomas, ocupadas demais em corresponder às impossíveis expectativas que se colocam sobre elas. Ocupadas demais inclusive para serem crianças.
Nenhum filho jamais deve vir para preencher um lugar tão sufocante.

Sou obrigada a recorrer à minha discussão de sempre: porquê a obsessão com a perfeição? O que há de errado com os bons e velhos erros dos pais que dão aos filhos humanidade e tolerância à frustração? Pais perfeitos acabam criando pobres criaturas que, mesmo adultas, passarão suas vidas buscando a aprovação daqueles para quem nada nunca é suficientemente bom. Não é triste demais?


Crianças não precisam de perfeicão. Precisam de pais felizes.
Felizes, presentes e castrados. E que possam cometer erros em nome do amor.







segunda-feira, 22 de abril de 2013

Felicidade(ina)


Passando pelas redes sociais, acho graça como a felicidade das pessoas é constante e genuína. Ficam de fora os conflitos, as dores, os ódios e as infelicidades. Tudo bem, ninguém precisa, realmente, anunciar que a tristeza chegou, mas porque a felicidade me parece tão obrigatória?
É preciso ser feliz!! Na constituição americana está claro: todo cidadão tem direito à felicidade.
Assim como ele tem direito à liberdade de expressão, à saúde pública, ao ensino gratuito, ser feliz também é direito e deve ser cumprido (por quem?).

No mesmo cenário, crianças devoradoras de hambúrguer, para ou pelas quais me pergunto: elas têm fome de quê? A depressão camuflada atrás da fluoxetina, a síndrome do pânico disseminada, o TDAH como regra, bipolaridade. A última é a do autismo que, segundo pesquisas, atinge uma parcela assustadora e o pior, a tendência é aumentar. Mas tudo bem, afinal de contas, não há problema para o qual o americano não encontre solução. ”Vamos medicar as crianças assim que vierem ao mundo. Medicamos a criança para evitar o autismo e, aproveitando o embalo, medicamos também as mães, evitando a depressão pós-parto”.

Isso tudo me lembra meu estágio obrigatório da faculdade em hospital psiquiátrico. A ala feminina que, na hora dos exercícios físicos, me explicava: “veja, aqui é muito fácil dividir os times. Temos o lado das bipolares e o lado das depressivas”. Elas achavam graça e eu entendia, pois era o único lugar que lhes restara. Me lembro também de um paciente recém chegado, internado por conta de uma crise de ansiedade. Ele dizia que devia mesmo estar depressivo, chorando feito “louco” pelos cantos. Descrevia seus dois dias de internamento, com todos os remédios, a comida sem sal, a ausência da família, a loucura por todos os lados: “É, acho que você seria mesmo louco se não estivesse chorando”, escapou do meu discurso ensaiado.

A onda vem dos Estados Unidos e não há como negar. O perigoso é o quão rápido e intensamente nós estamos embarcando nela.
A felicidade não é um direito, e sim uma conseqüência. E, sobre ela, age a responsabilidade de cada um por cada uma de suas escolhas. Isso é verdadeiro e não há outro caminho. Então, onde é que isso se perdeu?
Ora, se a felicidade é uma conseqüência daquilo que escolhemos fazer e da forma como encaramos as coisas, ela só pode ser transitória, pois somos seres marcados pela falta e, portanto, errantes. Isso significa que, entre um estado de alegria e outro, há também a tristeza. E quem sabe quanto tempo uma tristeza pode durar? Certa vez, ao ver uma paciente chorando a doença de seu filho, eu tive o impulso de dizer-lhe alguma coisa, qualquer coisa que aliviasse sua dor insuportável. É claro que não o segui, pois imediatamente eu me corrigi: sou eu quem não consegue vê-la chorar. Meu trabalho, em muitos casos, é permitir que as lágrimas escorram, que a raiva arrebente, que o luto se faça. Há coisas na vida para as quais não existem metáforas ou remédios. O silêncio mesmo, é que pode fazer sentido quando as respostas já não são suficientes. Eu digo que a insuficiência é a palavra da vez. Nada mais é suficiente pra ninguém. É preciso ser feliz, realizado, bem sucedido. O tempo corre e não se pode errar. É a era da agilidade, da precisão, da genialidade. E, se para isso, for preciso pagar a conta dos remédios controlados, tudo bem, afinal de contas, mais do que tudo, é a Era da Felicidade. 

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Silêncio


Ela olhava para o mar, deitada na velha espreguiçadeira da sacada, o livro aberto ainda na primeira página.
Há dias que as ondas faziam barulhos mais altos. Iam mais longe, deixando marcas pesadas na areia. Barulhento e pesado estava também seu coração: “posso senti-lo batendo dentro de mim”, ela dizia ao médico, desejando que ele pudesse lhe explicar o porquê.
Na volta para a casa, todas as noites, ela passava pelos jardins do vizinho, admirando as árvores compridas e cheias, contando um pouco da vida de quem vivia ali.
Em seu próprio jardim, o vazio. Esse mesmo que tomava conta também da cozinha, da sala e da cama. Ele insistia em continuar vivendo ali. Mas ESTAR ali era uma coisa que, ambos sabiam, já não era possível.
O silêncio envolvia a casa toda. Por erro de cálculo, às vezes, os olhares se cruzavam e a sensação de estranheza avisava do perigo eminente. 
Os porta-retratos agora pareciam guardar imagens alheias. Olhá-los era uma tortura pela qual nenhum dos dois se atrevia a passar. Mas a cada passagem pela casa, eles lhes lembravam de um tempo que fazia questão de insistir em doer.
O relógio, antes não notado, ofuscado e oprimido em meio aos sorrisos, agora marcava os segundos com uma dura precisão. A cada batida, a certeza de que tudo que foi, não volta mais.
Os dias corriam enquanto os dois assistiam à vida esvair-se pelos vãos.
Tantos desejos ...

Ela tinha medo de perguntar-se em voz alta, e era óbvio que ele também. Por isso, a ausência da palavra. "Aquilo que não é dito, ainda não é de verdade", pensavam os dois juntos, mas separados.
“O que é que ainda nos mantém aqui?”

O fio que entrelaça as pessoas tem muitos nomes. Frágil ou não, ele sabe como amarrar-se indefinidamente, até que alguém puxe uma das pontas. Ambos sabiam que não puxariam, não poderiam.
A casa, antes membro do triângulo perfeito, agora desmontava-se em partes dolorosamente esquecidas.

Tudo que era óbvio se foi.

“É preciso revestir-se de vida ou a vida periga morrer no silêncio”, ela pensava, enquanto olhava o mar.


segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Poder de um sorriso


Ontem eu fui surpreendida em uma simples viagem. Vinha de Curitiba a Maringá a trabalho e, claro, também aproveitava para abraçar minha amada mãe no seu dia. Confesso que nunca gostei muito de viajar de avião porque tenho preguiça daquele ritual todo “fazer a mala, carregar a mala pelo elevador, ir até o aeroporto, fazer o check-in, ir para a sala de embarque, trocar de portão, aguardar na fila para entrar no avião, arrumar a bagagem de mão nos compartimentos, colocar o cinto de segurança, “ai, esqueci de desligar o celular”, levantar, sentar de novo. “Ai, esqueci de pegar o livro”... tudo isso ida e volta!!
Pra ajudar, ontem também não era um dos meus melhores dias. Eu estava triste, cansada, com a sensação de que nada estava no lugar certo.

Já sentada na minha poltrona, abri meu livro e comecei a ler as primeiras páginas, pois tinha acabado de comprá-lo. Mas, como ainda não conhecia muito bem a narrativa, não consegui me concentrar. Li mais ou menos umas 20 vezes o mesmo parágrafo quando, finalmente, desisti e liguei a televisão. Na SKY da Azul, encontrei o canal próprio da companhia, um canal de música adolescente, esportes e, quando estava quase desistindo da televisão e pensando em dormir, achei um canal infantil que passava um desenho dos Flintstones.
Sem que eu pudesse perceber, eu sorri.

O desenho mostrava o dilema de Fred que, ou agradava Vilma indo a um baile dançar, ou mantinha a imagem de machão aos amigos, afinal de contas, homem não dança. Fred acaba decidindo que sua mulher é mais importante e deixa que Barney lhe ensine Ballet, quando todos os homens da cidade o surpreendem de “tutu” e ele precisa se esconder atrás da moita. Delicadamente, Vilma acaba lhe explicando que homem mesmo é aquele que não tem medo de perder sua virilidade, pois ela nada tem a ver com a roupa que usa.

Vendo Fred dançar ballet, eu dei gargalhadas. Provavelmente, por estar usando fones de ouvido, devo ter feito barulho e as pessoas, com certeza, me olharam. Eu não me preocupei. Na verdade, não me lembrei que havia pessoas. Até que a comissária de bordo se abaixou um pouco pra falar comigo e eu tirei os fones pra ouvi-la perguntar se desejava beber alguma coisa. Pedi suco de laranja, enquanto ainda mantinha o sorriso no rosto por causa do Fred Flintstone.

Ela olhou para a televisão e me disse: “Ah! Os Flintstones! Eu adorava quando era criança. Era a única coisa que me fazia comer arroz e feijão”.
Foi aí que eu me dei conta. Nós não temos muitos momentos como esses na vida, pois ela é tão desenfreada, que acaba engolindo nosso senso de humor, inocência e a habilidade de rir de qualquer coisa sem se preocupar se isso faz parte da lista de comportamentos que passam despercebidos. Porque é exatamente isso que nós buscamos. As roupas certas, os empregos promissores, as companhias adequadas, os modos ajustados. Nós vivemos trilhando um caminho onde o legal é ser apropriado.

Mas o que é ser apropriado? Porque o adolescente de cabelos moicanos, roupas coloridas e maquiagem azul não é apropriado? Porque a mulher de 42 anos que trabalha viajando, decidiu não ter filhos e nunca esperou o príncipe encantado é vista como fracassada? O que há de errado com aquele cara que preferiu, apesar de todo seu dinheiro e inteligência, trancar a faculdade de medicina e ensinar música às crianças? E aquela moça que não se importa com o seu peso e não, não acha feio ser gordinha?

Nós fazemos esses julgamentos todos os dias.

E o motivo é apenas um. Existe, dentro de nós, mesmo que desconhecidos, pedacinhos de cada uma das pessoas que a gente aprendeu a julgar. A maioria das coisas que nós apontamos é a projeção de uma parte nossa com a qual não queremos ou não podemos conviver.

Imagine só tirar o terno preto e colocar as roupas mais coloridas do armário sem se incomodar com os olhares furtivos, pois aquilo faz parte de quem você é. Tem algo nesse jeito de se vestir que diz de você e que se expressa por você.
E que admirável é deixar de realizar pelos outros e ter coragem de realizar por si mesmo. Não é fácil enfrentar os nossos próprios desejos. Muitas vezes, os desejos que os outros colocam sobre nós são mais fáceis de alcançar.
E que bom deve ser se sentir livre pra quebrar padrões. Isso requer uma certa coragem. Não ficar esperando o príncipe encantado deve ser uma boa maneira de conhecer todos os personagens da história. Não se preocupar com o peso deve tornar o chocolate ainda mais saboroso.

É importante que a gente se pergunte sobre aquilo que tanto criticamos. É preciso. Depois que a gente aprende, acaba se tornando um excelente exercício de autoconhecimento. É difícil, mas só assim podemos nos dar conta de que não somos tão diferentes. Há algo de esquisito, de frágil e de feio em todos nós.
Reconhecer nossas fraquezas às vezes nos faz enxergar mais longe. Pra isso, é preciso tomar distância das coisas para que elas possam assumir forma diante dos nossos olhos.

E também aceitar nossos sentimentos mais genuínos. Ninguém pode sorrir o tempo todo, por mais educado que seja. Estar triste faz parte da caminhada. É melhor deixar que lágrimas venham ao invés de fazer esforço para mantê-las na garganta. Foi por estar triste que eu não me preocupei em ter pessoas à minha volta que poderiam censurar o meu riso. É quando nos permitimos ser frágeis que alguma coisa da nossa infância pode vir nos lembrar de que sorrir só é bom quando é de verdade.

E que não há nada melhor na vida que ser surpreendido com um pedaço de nós mesmos que há tempos estava esquecido.

Depois do desenho dos Flintstones, eu saí do avião um pouco mais forte pra comer o “arroz e feijão” que me esperava aqui fora.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A pele que nos habita: o que acontece quando ela não nos pertence?


Como primeiro texto, vou colocar minhas impressões sobre um filme maravilhosamente construído em seus mínimos detalhes e de um diretor que, particularmente, eu adoro: "A pele que habito", de Pedro Almodóvar. Não chega a ser uma análise, apenas as passagens que mais me tocaram e, claro, sem faltar a associação de sempre com a Psicanálise. 



Almodóvar definitivamente não é para qualquer um. E não me refiro aqui à intelectualidade ou à capacidade de abstração. O “qualquer um” diz respeito a um estado de alma que pode (ou não) ser tocado pelo mais profundo de uma obra de Pedro. Digo isso porque, normalmente, ao sair do cinema depois de um de seus filmes, o que mais gosto de observar é o choque das pessoas com suas estórias tão desvairadas.
É preciso ter certo estado de preparação sim, mas não para entender o enredo ou apreciar a bela obra de arte que, aliás, ele sempre nos traz. É preciso estar preparado para apropriar-se da idéia (essa sim, muito mais assustadora) de que o fascinante não é a distância que existe entre suas tramas e a “vida real”, mas, pelo contrário, a proximidade. Claro, Almodóvar é um exagero delicioso!! E isso é o que há de mais brilhante em seu trabalho. Os elementos e personagens caricaturados, o enredo mirabolante, a sexualidade como pano de fundo ... Tudo isso, em outras mãos, facilmente beiraria o ridículo. Almodóvar, porém, flutua sobre esse perigo. Ele passa pelos estreitos caminhos do bizarro e sempre nos convoca a uma inebriante experiência.
Em “A pele que habito” estão todos seus elementos preferidos: o pai sem nome, a mãe perversa e poderosa, os sentimentos exagerados, desejos proibidos e, é claro, a sexualidade como amarração. Porém, desta vez, temos algo novo: o tema da mudança de sexo. Tema, inclusive, que vem sendo discutido há alguns anos e, mais fervorosamente, nos últimos. Obviamente, na trama de Vicente/Vera não se trata de um corpo a ser retificado, uma identidade mal colocada. Certa vez, ouvi de um paciente: “isso que me foi colocado, isso aqui que me foi empurrado, é uma coisa a mais. É como se, diante da perfeição, alguém tivesse adicionado uma grossa pitada de feiúra”. Este paciente falava de seu órgão genital, originalmente masculino e que nunca lhe pertenceu. Como ele me dizia, “nunca fui homem, apenas fui feito, por engano, na forma errada”. E isso é absolutamente verdadeiro. O sentimento profundo de ser homem ou ser mulher não passa apenas pelo caráter físico do gênero e pouco tem a ver com a tarefa para a qual tal corpo foi designado. Se assim fosse, seríamos todos submetidos ao real e, então, em que poderíamos nos agarrar para nos constituir? Quem habita o real é o perverso. Assim, quem sabe, seríamos parecidos com o tigre: o irmão de Robert que entra em cena vestindo sua melhor roupa e sendo precisamente aquilo que é: um animal selvagem buscando o que pode satisfazer sua necessidade. Não, neuróticos que somos, pertencentes à linguagem, fomos todos atravessados pelo (traumático) significante. E, portanto, a sensação genuína de ser homem ou mulher é algo que não pode ser mudado, pois é inerente à um desejo presente em um discurso que existe anteriormente ao nascimento.
Pela paixão de um gozo não interditado, Robert espera reintegrar a esposa morta, e Vicente tem seu corpo masculino cuidadosamente esculpido em um corpo de mulher. E não apenas o corpo. O olhar, a voz ... Mais ou menos às voltas de Médico e Monstro, Robert transforma aquilo que, para ele, era sua matéria prima, em uma criatura dominada e designada para seu prazer. Vicente sofre e se recusa a aceitar sua nova condição, mas com seus significantes todos abalados, sem nada em que se segurar vai, aos poucos, permitindo que essa nova identidade lhe tome. Sua única saída é o semblante. Afinal, que saída se tem quando o que impera é o real? É isso que lhe está dizendo Robert, quando lhe dá os moldes e em seguida manda-lhe abrir o orifício como “se disso dependesse sua vida”. Vicente torna-se Vera e a criatura apaixona-se pelo criador. Durante todo o filme, porém, é importante notar que seus sentimentos são ambíguos. Algo lhe estranha em sua condição. Vicente ainda vive.
Aprisionado neste novo lugar que lhe é conferido, agora caminha por uma família que é doente de loucura, e nela uma única lei impera: a do gozo. A lei imposta por uma mãe perversa e que, por sua vez, cria dois perversos, filhos de um pai sem nome. A esposa morta, tão colada à imagem do espelho, tão presa em sua própria pele ... e a filha Norma que, como regra, segue a Norma da família.

Quase que completamente devorado, ao ver sua foto no jornal, Vicente é ressuscitado em seu mais próprio significante, o nome. Ao lembrar-se de seu passado, há a emergência de um recalque que lhe reconta sua própria história. Assim, ele pode submergir, desatar-se disso que é real, mas que nada tem a ver com sua essência. Por fim, Almodóvar nos oferece um desfecho perfeito quando, decididamente, como última palavra do filme, Vicente pode dizer:

“Hola mamá, yo soy Vicente”. (BRILHANTE)