segunda-feira, 16 de abril de 2012

A pele que nos habita: o que acontece quando ela não nos pertence?


Como primeiro texto, vou colocar minhas impressões sobre um filme maravilhosamente construído em seus mínimos detalhes e de um diretor que, particularmente, eu adoro: "A pele que habito", de Pedro Almodóvar. Não chega a ser uma análise, apenas as passagens que mais me tocaram e, claro, sem faltar a associação de sempre com a Psicanálise. 



Almodóvar definitivamente não é para qualquer um. E não me refiro aqui à intelectualidade ou à capacidade de abstração. O “qualquer um” diz respeito a um estado de alma que pode (ou não) ser tocado pelo mais profundo de uma obra de Pedro. Digo isso porque, normalmente, ao sair do cinema depois de um de seus filmes, o que mais gosto de observar é o choque das pessoas com suas estórias tão desvairadas.
É preciso ter certo estado de preparação sim, mas não para entender o enredo ou apreciar a bela obra de arte que, aliás, ele sempre nos traz. É preciso estar preparado para apropriar-se da idéia (essa sim, muito mais assustadora) de que o fascinante não é a distância que existe entre suas tramas e a “vida real”, mas, pelo contrário, a proximidade. Claro, Almodóvar é um exagero delicioso!! E isso é o que há de mais brilhante em seu trabalho. Os elementos e personagens caricaturados, o enredo mirabolante, a sexualidade como pano de fundo ... Tudo isso, em outras mãos, facilmente beiraria o ridículo. Almodóvar, porém, flutua sobre esse perigo. Ele passa pelos estreitos caminhos do bizarro e sempre nos convoca a uma inebriante experiência.
Em “A pele que habito” estão todos seus elementos preferidos: o pai sem nome, a mãe perversa e poderosa, os sentimentos exagerados, desejos proibidos e, é claro, a sexualidade como amarração. Porém, desta vez, temos algo novo: o tema da mudança de sexo. Tema, inclusive, que vem sendo discutido há alguns anos e, mais fervorosamente, nos últimos. Obviamente, na trama de Vicente/Vera não se trata de um corpo a ser retificado, uma identidade mal colocada. Certa vez, ouvi de um paciente: “isso que me foi colocado, isso aqui que me foi empurrado, é uma coisa a mais. É como se, diante da perfeição, alguém tivesse adicionado uma grossa pitada de feiúra”. Este paciente falava de seu órgão genital, originalmente masculino e que nunca lhe pertenceu. Como ele me dizia, “nunca fui homem, apenas fui feito, por engano, na forma errada”. E isso é absolutamente verdadeiro. O sentimento profundo de ser homem ou ser mulher não passa apenas pelo caráter físico do gênero e pouco tem a ver com a tarefa para a qual tal corpo foi designado. Se assim fosse, seríamos todos submetidos ao real e, então, em que poderíamos nos agarrar para nos constituir? Quem habita o real é o perverso. Assim, quem sabe, seríamos parecidos com o tigre: o irmão de Robert que entra em cena vestindo sua melhor roupa e sendo precisamente aquilo que é: um animal selvagem buscando o que pode satisfazer sua necessidade. Não, neuróticos que somos, pertencentes à linguagem, fomos todos atravessados pelo (traumático) significante. E, portanto, a sensação genuína de ser homem ou mulher é algo que não pode ser mudado, pois é inerente à um desejo presente em um discurso que existe anteriormente ao nascimento.
Pela paixão de um gozo não interditado, Robert espera reintegrar a esposa morta, e Vicente tem seu corpo masculino cuidadosamente esculpido em um corpo de mulher. E não apenas o corpo. O olhar, a voz ... Mais ou menos às voltas de Médico e Monstro, Robert transforma aquilo que, para ele, era sua matéria prima, em uma criatura dominada e designada para seu prazer. Vicente sofre e se recusa a aceitar sua nova condição, mas com seus significantes todos abalados, sem nada em que se segurar vai, aos poucos, permitindo que essa nova identidade lhe tome. Sua única saída é o semblante. Afinal, que saída se tem quando o que impera é o real? É isso que lhe está dizendo Robert, quando lhe dá os moldes e em seguida manda-lhe abrir o orifício como “se disso dependesse sua vida”. Vicente torna-se Vera e a criatura apaixona-se pelo criador. Durante todo o filme, porém, é importante notar que seus sentimentos são ambíguos. Algo lhe estranha em sua condição. Vicente ainda vive.
Aprisionado neste novo lugar que lhe é conferido, agora caminha por uma família que é doente de loucura, e nela uma única lei impera: a do gozo. A lei imposta por uma mãe perversa e que, por sua vez, cria dois perversos, filhos de um pai sem nome. A esposa morta, tão colada à imagem do espelho, tão presa em sua própria pele ... e a filha Norma que, como regra, segue a Norma da família.

Quase que completamente devorado, ao ver sua foto no jornal, Vicente é ressuscitado em seu mais próprio significante, o nome. Ao lembrar-se de seu passado, há a emergência de um recalque que lhe reconta sua própria história. Assim, ele pode submergir, desatar-se disso que é real, mas que nada tem a ver com sua essência. Por fim, Almodóvar nos oferece um desfecho perfeito quando, decididamente, como última palavra do filme, Vicente pode dizer:

“Hola mamá, yo soy Vicente”. (BRILHANTE)