segunda-feira, 14 de maio de 2012

O Poder de um sorriso


Ontem eu fui surpreendida em uma simples viagem. Vinha de Curitiba a Maringá a trabalho e, claro, também aproveitava para abraçar minha amada mãe no seu dia. Confesso que nunca gostei muito de viajar de avião porque tenho preguiça daquele ritual todo “fazer a mala, carregar a mala pelo elevador, ir até o aeroporto, fazer o check-in, ir para a sala de embarque, trocar de portão, aguardar na fila para entrar no avião, arrumar a bagagem de mão nos compartimentos, colocar o cinto de segurança, “ai, esqueci de desligar o celular”, levantar, sentar de novo. “Ai, esqueci de pegar o livro”... tudo isso ida e volta!!
Pra ajudar, ontem também não era um dos meus melhores dias. Eu estava triste, cansada, com a sensação de que nada estava no lugar certo.

Já sentada na minha poltrona, abri meu livro e comecei a ler as primeiras páginas, pois tinha acabado de comprá-lo. Mas, como ainda não conhecia muito bem a narrativa, não consegui me concentrar. Li mais ou menos umas 20 vezes o mesmo parágrafo quando, finalmente, desisti e liguei a televisão. Na SKY da Azul, encontrei o canal próprio da companhia, um canal de música adolescente, esportes e, quando estava quase desistindo da televisão e pensando em dormir, achei um canal infantil que passava um desenho dos Flintstones.
Sem que eu pudesse perceber, eu sorri.

O desenho mostrava o dilema de Fred que, ou agradava Vilma indo a um baile dançar, ou mantinha a imagem de machão aos amigos, afinal de contas, homem não dança. Fred acaba decidindo que sua mulher é mais importante e deixa que Barney lhe ensine Ballet, quando todos os homens da cidade o surpreendem de “tutu” e ele precisa se esconder atrás da moita. Delicadamente, Vilma acaba lhe explicando que homem mesmo é aquele que não tem medo de perder sua virilidade, pois ela nada tem a ver com a roupa que usa.

Vendo Fred dançar ballet, eu dei gargalhadas. Provavelmente, por estar usando fones de ouvido, devo ter feito barulho e as pessoas, com certeza, me olharam. Eu não me preocupei. Na verdade, não me lembrei que havia pessoas. Até que a comissária de bordo se abaixou um pouco pra falar comigo e eu tirei os fones pra ouvi-la perguntar se desejava beber alguma coisa. Pedi suco de laranja, enquanto ainda mantinha o sorriso no rosto por causa do Fred Flintstone.

Ela olhou para a televisão e me disse: “Ah! Os Flintstones! Eu adorava quando era criança. Era a única coisa que me fazia comer arroz e feijão”.
Foi aí que eu me dei conta. Nós não temos muitos momentos como esses na vida, pois ela é tão desenfreada, que acaba engolindo nosso senso de humor, inocência e a habilidade de rir de qualquer coisa sem se preocupar se isso faz parte da lista de comportamentos que passam despercebidos. Porque é exatamente isso que nós buscamos. As roupas certas, os empregos promissores, as companhias adequadas, os modos ajustados. Nós vivemos trilhando um caminho onde o legal é ser apropriado.

Mas o que é ser apropriado? Porque o adolescente de cabelos moicanos, roupas coloridas e maquiagem azul não é apropriado? Porque a mulher de 42 anos que trabalha viajando, decidiu não ter filhos e nunca esperou o príncipe encantado é vista como fracassada? O que há de errado com aquele cara que preferiu, apesar de todo seu dinheiro e inteligência, trancar a faculdade de medicina e ensinar música às crianças? E aquela moça que não se importa com o seu peso e não, não acha feio ser gordinha?

Nós fazemos esses julgamentos todos os dias.

E o motivo é apenas um. Existe, dentro de nós, mesmo que desconhecidos, pedacinhos de cada uma das pessoas que a gente aprendeu a julgar. A maioria das coisas que nós apontamos é a projeção de uma parte nossa com a qual não queremos ou não podemos conviver.

Imagine só tirar o terno preto e colocar as roupas mais coloridas do armário sem se incomodar com os olhares furtivos, pois aquilo faz parte de quem você é. Tem algo nesse jeito de se vestir que diz de você e que se expressa por você.
E que admirável é deixar de realizar pelos outros e ter coragem de realizar por si mesmo. Não é fácil enfrentar os nossos próprios desejos. Muitas vezes, os desejos que os outros colocam sobre nós são mais fáceis de alcançar.
E que bom deve ser se sentir livre pra quebrar padrões. Isso requer uma certa coragem. Não ficar esperando o príncipe encantado deve ser uma boa maneira de conhecer todos os personagens da história. Não se preocupar com o peso deve tornar o chocolate ainda mais saboroso.

É importante que a gente se pergunte sobre aquilo que tanto criticamos. É preciso. Depois que a gente aprende, acaba se tornando um excelente exercício de autoconhecimento. É difícil, mas só assim podemos nos dar conta de que não somos tão diferentes. Há algo de esquisito, de frágil e de feio em todos nós.
Reconhecer nossas fraquezas às vezes nos faz enxergar mais longe. Pra isso, é preciso tomar distância das coisas para que elas possam assumir forma diante dos nossos olhos.

E também aceitar nossos sentimentos mais genuínos. Ninguém pode sorrir o tempo todo, por mais educado que seja. Estar triste faz parte da caminhada. É melhor deixar que lágrimas venham ao invés de fazer esforço para mantê-las na garganta. Foi por estar triste que eu não me preocupei em ter pessoas à minha volta que poderiam censurar o meu riso. É quando nos permitimos ser frágeis que alguma coisa da nossa infância pode vir nos lembrar de que sorrir só é bom quando é de verdade.

E que não há nada melhor na vida que ser surpreendido com um pedaço de nós mesmos que há tempos estava esquecido.

Depois do desenho dos Flintstones, eu saí do avião um pouco mais forte pra comer o “arroz e feijão” que me esperava aqui fora.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

A pele que nos habita: o que acontece quando ela não nos pertence?


Como primeiro texto, vou colocar minhas impressões sobre um filme maravilhosamente construído em seus mínimos detalhes e de um diretor que, particularmente, eu adoro: "A pele que habito", de Pedro Almodóvar. Não chega a ser uma análise, apenas as passagens que mais me tocaram e, claro, sem faltar a associação de sempre com a Psicanálise. 



Almodóvar definitivamente não é para qualquer um. E não me refiro aqui à intelectualidade ou à capacidade de abstração. O “qualquer um” diz respeito a um estado de alma que pode (ou não) ser tocado pelo mais profundo de uma obra de Pedro. Digo isso porque, normalmente, ao sair do cinema depois de um de seus filmes, o que mais gosto de observar é o choque das pessoas com suas estórias tão desvairadas.
É preciso ter certo estado de preparação sim, mas não para entender o enredo ou apreciar a bela obra de arte que, aliás, ele sempre nos traz. É preciso estar preparado para apropriar-se da idéia (essa sim, muito mais assustadora) de que o fascinante não é a distância que existe entre suas tramas e a “vida real”, mas, pelo contrário, a proximidade. Claro, Almodóvar é um exagero delicioso!! E isso é o que há de mais brilhante em seu trabalho. Os elementos e personagens caricaturados, o enredo mirabolante, a sexualidade como pano de fundo ... Tudo isso, em outras mãos, facilmente beiraria o ridículo. Almodóvar, porém, flutua sobre esse perigo. Ele passa pelos estreitos caminhos do bizarro e sempre nos convoca a uma inebriante experiência.
Em “A pele que habito” estão todos seus elementos preferidos: o pai sem nome, a mãe perversa e poderosa, os sentimentos exagerados, desejos proibidos e, é claro, a sexualidade como amarração. Porém, desta vez, temos algo novo: o tema da mudança de sexo. Tema, inclusive, que vem sendo discutido há alguns anos e, mais fervorosamente, nos últimos. Obviamente, na trama de Vicente/Vera não se trata de um corpo a ser retificado, uma identidade mal colocada. Certa vez, ouvi de um paciente: “isso que me foi colocado, isso aqui que me foi empurrado, é uma coisa a mais. É como se, diante da perfeição, alguém tivesse adicionado uma grossa pitada de feiúra”. Este paciente falava de seu órgão genital, originalmente masculino e que nunca lhe pertenceu. Como ele me dizia, “nunca fui homem, apenas fui feito, por engano, na forma errada”. E isso é absolutamente verdadeiro. O sentimento profundo de ser homem ou ser mulher não passa apenas pelo caráter físico do gênero e pouco tem a ver com a tarefa para a qual tal corpo foi designado. Se assim fosse, seríamos todos submetidos ao real e, então, em que poderíamos nos agarrar para nos constituir? Quem habita o real é o perverso. Assim, quem sabe, seríamos parecidos com o tigre: o irmão de Robert que entra em cena vestindo sua melhor roupa e sendo precisamente aquilo que é: um animal selvagem buscando o que pode satisfazer sua necessidade. Não, neuróticos que somos, pertencentes à linguagem, fomos todos atravessados pelo (traumático) significante. E, portanto, a sensação genuína de ser homem ou mulher é algo que não pode ser mudado, pois é inerente à um desejo presente em um discurso que existe anteriormente ao nascimento.
Pela paixão de um gozo não interditado, Robert espera reintegrar a esposa morta, e Vicente tem seu corpo masculino cuidadosamente esculpido em um corpo de mulher. E não apenas o corpo. O olhar, a voz ... Mais ou menos às voltas de Médico e Monstro, Robert transforma aquilo que, para ele, era sua matéria prima, em uma criatura dominada e designada para seu prazer. Vicente sofre e se recusa a aceitar sua nova condição, mas com seus significantes todos abalados, sem nada em que se segurar vai, aos poucos, permitindo que essa nova identidade lhe tome. Sua única saída é o semblante. Afinal, que saída se tem quando o que impera é o real? É isso que lhe está dizendo Robert, quando lhe dá os moldes e em seguida manda-lhe abrir o orifício como “se disso dependesse sua vida”. Vicente torna-se Vera e a criatura apaixona-se pelo criador. Durante todo o filme, porém, é importante notar que seus sentimentos são ambíguos. Algo lhe estranha em sua condição. Vicente ainda vive.
Aprisionado neste novo lugar que lhe é conferido, agora caminha por uma família que é doente de loucura, e nela uma única lei impera: a do gozo. A lei imposta por uma mãe perversa e que, por sua vez, cria dois perversos, filhos de um pai sem nome. A esposa morta, tão colada à imagem do espelho, tão presa em sua própria pele ... e a filha Norma que, como regra, segue a Norma da família.

Quase que completamente devorado, ao ver sua foto no jornal, Vicente é ressuscitado em seu mais próprio significante, o nome. Ao lembrar-se de seu passado, há a emergência de um recalque que lhe reconta sua própria história. Assim, ele pode submergir, desatar-se disso que é real, mas que nada tem a ver com sua essência. Por fim, Almodóvar nos oferece um desfecho perfeito quando, decididamente, como última palavra do filme, Vicente pode dizer:

“Hola mamá, yo soy Vicente”. (BRILHANTE)